Lucas 23:43(Estado Intermediário do Ladrão)

 O PARAÍSO PRÉ-RESSURREIÇÃO


Embora saibamos que na ressurreição, teremos a habitação da “Nova Jerusalém” (Ap 21,1-2), sabemos pela própria escritura denominada de “terceiro céu”, que o paraíso existe, sendo a morada dos justos (Hb 12,22-23). Paulo narra com total emoção a alegria da alma separada do corpo ao relatar o testemunho de um homem em Cristo que foi arrebatado até esse local:

II Cor 12,2-3 – Conheço um homem em Cristo que há quatorze anos, foi arrebatado ao terceiro céu – se em seu corpo, não sei: se fora do corpo, não sei; Deus o sabe! E sei que esse homem – se no corpo ou fora do corpo não sei; Deus o sabe! – foi arrebatado até o PARAÍSO e ouviu palavras inefáveis, que não é lícito ao homem repetir.

O LADRÃO NA CRUZ

Jesus Cristo disse ao ladrão que ainda hoje, o mesmo estaria com ele no paraíso (II Cor 12,2-3):

Lc 23,43 – Ele (Jesus) respondeu: “Em verdade, eu te digo, hoje estarás comigo no paraíso”.

Não bastaria muitas linhas para termos a certeza que aqui existe mais uma prova de que  na morte, gozaremos da companhia de Deus, entretanto, os defensores do sono ou da aniquilação da alma, costumam mencionar que determinada esta passagem de Lucas foi "adulterada" e que na verdade, Nosso Senhor teria dito para o ladrão que sua promessa era dita hoje, mas, que só se concretizaria no futuro.  Pois bem, como já mencionei em outro artigo, não sou perito na língua, porém, tenho algumas noções. Primordialmente, o que define a interpretação dessa passagem, de fato, é a questão simples de uma "vírgula". É interessante mencionar que embora, atualmente alguns protestante defendam tal doutrina (morte da alma), o único lugar onde encontramos afirmação semelhante é na tradução "Torre de Vigia" das testemunhas de Jeová, onde se lê:

Lc 23,43 (Torre de Vigia) – E ele lhe disse: “Deveras, eu te digo hoje: Estarás comigo no Paraíso”.

Temos por conhecimento que nas traduções católicas e protestantes, o HOJE faz parte do instante e não de uma promessa futura que se concluiria no fim dos tempos. Para embasar a vírgula depois do hoje, alguns teólogos tem usado uma fonte bíblica oriunda do grego (Vaticanus 1209), já que como o grego não possuí originalmente “pontos”, verificaram que nesta passagem, exclusivamente nesse manuscrito, existe um “ponto” após o hoje (grego: semeron). Realmente, o grego “antigo” não possuía qualquer pontuação. O próprio Codex Sinaiticus na passagem referida (Lc 23,43) nada aponta para qualquer local de pontuação, tanto que os tradutores da obra, ao converterem o texto para o inglês, colocaram a linguagem como a conhecemos:

Lc 23,43 – And He Said to him: Verily I say to thee, THIS DAY thou shalt be with me in Paradise.

O que me chama atenção neste manuscrito é o fato de que por ser mais novo que o “Codex Vaticanus”, penso eu, que a passagem deveria ter qualquer sinal de pontuação, contudo, nós não vemos absolutamente nada. É estranho imaginar que o Vaticanus 1209, é antigo e possui uma referencia desse “ponto” enquanto o outro, mais novo, nada aparece e isso me leva a pensar que está questão não pode ser absorvida simplesmente por levar em consideração um escrito e o outro não. São Jerônimo, conhecedor profundo do grego, em sua vulgada, concede a mesma compreensão que da Igreja:

Evangelium secundum Lucam 23,43 – Et dixit illi: “Amen dico tibi: HODIE mecum eris in paradiso ”.

Isto é, mais uma vez aqui temos informações que não podem ser tomadas unicamente por uma “fonte” concreta de dados, mesmo porque, se olharmos na maioria das passagens (que a Igreja crê) onde Jesus Cristo diz: “Em verdade te digo” em nenhum momento ele necessitou usar o hoje como forma de complemento da promessa ou ensino, pelo contrário, as terminações de Cristo sempre eram uma consequência do próprio inicio da sua afirmação e aqui fica a minha pergunta: por que no caso de Lucas 23,43, o hoje deveria ser usado diferentemente?

Jo 3,11 – Em verdade, em verdade, te digo: falamos do que sabemos e damos testemunho do que vimos.

De qualquer forma, tirando a questão a respeito do “hoje” dito ao ladrão da Cruz, o outro emprego usado por Jesus em Marcos 14,30, mostra claramente que o “hoje” demonstrava aquilo que de fato deveria acontecer:

Mc 14,30 – E disse-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje, nesta noite, antes que o galo cante duas vezes, três vezes me negarás.

Aqui vemos claramente que Jesus diz, “Em verdade te digo hoje”, porém o fato manifestado pelo Senhor, se concretizaria naquela mesma noite, no tempo presente. Outro argumento fortemente usado é o fato de Cristo ter prometido que estaria com o ladrão naquele dia, porém, após a morte as escrituras atestam que o mesmo esteve nas profundezas do Hades (Ef 4,9-10), sendo assim, como devemos pensar a respeito da promessa? Bom, a própria escritura deixa claro que para Deus, “Um dia é como mil anos e mil anos como um dia (II Pe 3,8)”. Desta forma, entendemos o “hoje” como função do agora, porém, sem necessidade de pensar que o ladrão deveria estar com Jesus nas próximas horas, já que o nosso tempo não é o do Senhor. Aguardamos a Jerusalém celeste (Ap 21,10) onde nossos corpos estarão glorificados e incorruptíveis, porém, cremos no paraíso (II Cor 12,2-5) do qual faremos parte após a morte, aguardaremos na graça com a Igreja Celeste, enquanto esperamos a plenitude da nossa esperança: a ressurreição. Dessa forma, entendemos que o ladrão esteve e está com Jesus no paraíso celeste, aguardando a imortalidade dos corpos.

E disse a Jesus: Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino.
E disse-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso.
Lucas 23:42,43 ACF

Tomando-se como exemplo a Tradução do Novo Mundo, Bíblia traduzida e usada pelas Testemunhas de Jeová, que são aniquilacionistas. Este versículo é traduzido assim:

E ele lhe disse: "Deveras, eu te digo hoje: Estarás comigo no Paraíso." - Lucas 23:43, TNM

Como pode-se notar, o advérbio de tempo hoje está modificando o primeiro verbo, digo. Esta é a estratégia que aniquilacionistas normalmente adotam para interpretar o texto, já que o idioma original não possuía vírgulas para separar as orações. Assim, a ênfase de Jesus está sobre o ato de dizer.
Com duas versões possíveis para o texto, como então resolver qual a melhor tradução? Muitas pessoas têm respondido a esta última tradução, alegando que o verbo no presente juntamente com o advérbio hoje seria uma repetição desnecessária. No entanto, esta argumentação ignora que o idioma grego também pode se valer de repetições para enfatizar algo.
Por outro lado, acredito que uma análise do contexto e da sintaxe do texto são capazes de esclarecer quaisquer dúvidas sobre a tradução deste texto. Jesus estava respondendo um pedido do ladrão, então, vamos começar analisando este pedido, que Lucas registra como:

Lucas 23:42Então disse: Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino.και ελεγεν ιησου μνησθητι μου οταν ελθης εις την βασιλειαν σου

A sintaxe desta frase nos revela detalhes muito interessantes, que nossas traduções não costumam trazer. Observem este pedido: O ladrão pede para que Jesus se lembre dele. A palavra usada aqui é μνησθητι, que é um imperativo aoristo passivo. Qual é a função sintática de um imperativo aoristo? Em sua gramática, Daniel Wallace nos revela que este imperativo aoristo pode ser colocado sob duas categorias: o ingressivo e o constativo. O ingressivo tem como foco, o início da ação. No verso acima, seria como se o ladrão pedisse para Jesus começasse a se lembrar dele. Por outro lado, o imperativo aoristo constantivo parece se encaixar muito melhor no contexto deste relato:

Essa é uma ordem solene ou categórica. A ênfase não está no "comece uma ação", nem "continue a agir". A ênfase, porém, está na solenidade e urgência da ação. Assim, "Eu solenemente conjuro-te a agir e faço-o agora!". Esse é o uso do aoristo em preceitos gerais. Embora o mesmo esteja aqui transgredindo o papel do tempo presente, ele acrescenta certo gosto. É como se o autor dissesse: "Faça disso sua prioridade número um". Como tal, o aoristo é frequentemente usado para ordenar uma ação que está em estado de processo. Nesse caso, tanto a solenidade quanto a urgência destacada são sua força.
Gramática Grega, Wallace, Daniel B. Página 720, Editora EBR.

Em sumário sobre o imperativo aoristo constativo, pode ser dito como uma regra geral que essa ordem nada fala sobre o começar ou continuar uma ação. Ele basicamente tem a força de: "fazer de algo sua prioridade número um". Nosso conhecimento sobre o autor e o contexto nos ajudará a ver se os ouvintes têm feito qualquer prioridade quanto a isso, ou se eles o têm negligenciado completamente.
Gramática Grega, Wallace, Daniel B. Página 479, Editora EBR.

Assim, o nosso ladrão não apenas pede para Jesus se lembrar dele, mas também pede que se lembre dele com prioridade, tamanha é a ansiedade deste homem por redenção.
Embora ele demonstrasse tanta certeza sobre o fato de Jesus ser o Messias e sobre Jesus entrar no reino celestial, ele não tem certeza sobre quando isto iria acontecer. Por isto ele utiliza também a construção οταν + verbo no subjuntivo. Daniel Wallace em outro lugar explica esta construção:

O subjuntivo frequentemente é usado depois de um advérbio temporal (ou preposição imprópria) com o sentido de até que (ex., ἕως, ἄχρι, μέχρι). Ou ainda mesmo, depois da conjunção temporal ὅταν com o sentido de quando quer que. Ele indica uma contingência futura da perspectiva do tempo do verbo principal.
Gramática Grega, Wallace, Daniel B. Página 479, Editora EBR.

O pedido do ladrão portanto, seria como: "Jesus, quando quer que você entre em teu reino, lembre-se de mim em primeiro lugar!". Este é o pedido do ladrão, e a forma de se traduzir a resposta de Jesus deve levar este pedido em conta. Pois uma resposta que não o responde, estaria violando o contexto do relato.
Conhecendo portanto o pedido do ladrão, voltemos à resposta dada por Jesus. Sua resposta foi:

Lucas 23:43Respondeu-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso.και ειπεν αυτω αμην σοι λεγω σημερον μετ εμου εση εν τω παραδεισω

Aqui, Jesus inicia sua resposta com a expressão αμην λεγω (Verdade, te digo). Sobre a expressão, o BDAG nos diz:
partícula asseverativa, verdadeiramente, sempre com λεγω, iniciando uma declaração solene mas usada somente por Jesus (Eu te asseguro que, Eu solenemente te digo). - BDAG, verbete αμην
Assim, esta era uma expressão solene usada apenas por Jesus. Digno de nota é que em nenhuma das instâncias que Jesus a usa, ela é modificada pelo advérbio σημερον (hoje), como pode ser visto em Mt 5:18; Mt 5:26; Mt 6:2; Mt 6:5; Mt 6:16; Mt 8:10; Mc 8:12; Mc 9:1; Lc 4:24; Lc 12:37 e outros.


A posição de nomes e advérbios
(1) A regra é que um atributivo adjetivo anarto geralmente segue seu substantivo. (2) Um advérbio que define um adjetivo (ou um verbo) também toma a segunda posição. (3) Mt particularmente tem o hábito de colocar advérbios depois de imperativos enquanto coloca-os antes de indicativos.
A Greek Grammar of the New Testament and Other Early Christian Literature (BDF), parágrafo 474.

Assim, o item 2 deste texto do BDF tem sido usado às vezes para se defender que σημερον deve modificar o verbo λεγω, que o antecede. O terceiro ponto, no entanto, mostra que isto não era uma regra, já que Mateus os coloca antes de infinitivos. Além disto, o BDF comentando o segundo ponto, nos diz:

(2) Mt 4:8 υψηλον λιαν, 2:16 εθυμωθη λιαν, cf. μέλας δεινῶς Aelian, NA 1.19, ἔρημος δεινῶς 4.27. Mas também λιαν (om. D) πρωι Mk 16:2, λιαν γαρ αντεστη, 2Ts 4:15.

Ou seja, o próprio BDF nos traz exemplos onde um advérbio de tempo precede o verbo que ele modifica. Que motivos Lucas teria para colocar o advérbio antes? O BDF, falando sobre ordem de palavras no grego, comenta:

472. A ordem de palavras no Grego e assim no NT é mais livre do que em línguas modernas. Há, contudo, certas tendências e hábitos (no NT especialmente em narrativas) que tem criado algo como uma ordem de palavras comum.

Mais adiante, o BDF comenta ainda:

(2) Estas posições, contudo, não são de qualquer forma mandatórias. Qualquer ênfase em um elemento da sentença faz aquele elemento ser movido para frente...

Assim, se o elemento precisa de destaque, é natural que ele seja movimentado para frente. Se a palavra hoje precisava de destaque, seria de se esperar que ela fosse movida para o início da declaração. A pergunta é: ela precisava de destaque? Agora voltamos ao contexto.
Observamos que o pedido do ladrão demonstrava urgência. Ele pedia algo como "Jesus, dê prioridade para isto", e Jesus respondia: "Não se preocupe: hoje mesmo você colherá os frutos de sua confissão".
Por outro lado, o ladrão expressou também uma dúvida sobre o tempo que Jesus poderia cumprir esta promessa. Ele disse algo como "Quando quer que você entre em seu reino", e a resposta de Jesus faz um grande contraste com esta dúvida: "Hoje estarás comigo no paraíso".
Certamente esta tradução se encaixa bem melhor no contexto, do que a ênfase sobre o momento da promessa. O ladrão não queria saber quando a promessa era feita, mas quando ela se cumpriria.
Há ainda alguma contra-argumentação contra esta tradução, mesmo que a forma "te digo hoje" não se encaixe no contexto. Costuma-se alegar que, se Lucas desejasse deixar claro que hoje modifica o verbo estarás, ele teria usado a conjunção οτι (que) antes de σημερον. Este argumento é irrelevante, pois da mesma forma, Lucas poderia usar οτι depois de σημερον.
Por outro lado, costuma-se também citar as palavras de Jesus ressurreto, no evangelho de João:

Disse-lhe Jesus: Deixa de me tocar, porque ainda não subi ao Pai; mas vai a meus irmãos e dize-lhes que eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus. - João 20:17

O objetivo é demonstrar que Jesus não poderia ter ido ao paraíso naquele mesmo dia, pois depois, ao ressuscitar, ele teria dito que não tinha subido ao Pai ainda. Esta argumentação também é irrelevante, pois ela pressupõe que o paraíso mencionado por Jesus esteja localizado no céu, algo que não pode ser demonstrado através de textos bíblicos. Mesmo recorrendo-se à literatura judaica da época, que fala sobre a localização do paraíso, podemos perceber que o paraíso não é localizado onde Deus "habita". O segundo livro de Enoque, por exemplo, situa o paraíso no terceiro céu, sendo que Deus "habita" o sétimo céu (2 Enoque 3).

Conclusão

Acreditamos que o contexto é primordial na seleção de qual a melhor tradução deste texto. E como observamos aqui, a tradução que melhor preserva o contexto é a tradução que faz o advérbio hoje modificar o verbo estarás. Como Daniel B. Wallace disse em sua gramática, e que já citamos antes, "Nosso conhecimento sobre o autor e o contexto nos ajudará a ver se os ouvintes têm feito qualquer prioridade quanto a isso, ou se eles o têm negligenciado completamente". Quando Jesus diz que hoje o ladrão estaria no paraíso, Jesus estava demonstrando que realmente estava tratando aquele assunto com a mais alta prioridade. Não era apenas uma promessa feita naquele dia, mas era uma promessa cumprida naquele dia.

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